quarta-feira, 17 de junho de 2015

Notícia ótima: Tres aquarelas selecionadas para o LXIII Salão de Belas Artes de Piracicaba!
A abertura será no dia 7 de agosto, às 20h, na Pinacoteca Municipal Miguel Dutra, Rua Moraes Barros, 233 - Centro - Piracicaba. Todos convidados!
E aí estão os trabalhos selecionados:


domingo, 14 de junho de 2015


UM DIA
Maria Rita Almeida Correa

       -Tem tanta coisa importante que eu nem sei por onde começar.
       -Escolha.
       -Então, eu estou tentando decidir o que é mais importante pra escolher, mas o problema é que eu não consigo.
       -Tenta não pensar, pelo amor de Deus, uma vez, pra variar...
       -Se eu não pensar dá na mesma, continuo sem fazer nada, o meu movimento hoje é não fazer movimento nenhum.
       -Tudo bem, então não faça!
       -Mas isso me deixa angustiado.

       Vera ficou em silêncio, se controlando para não fazer nenhum comentário agressivo. Adolescência é mesmo uma fase difícil e ela tinha de ter paciência... Não, não era verdade. Seu filho era assim - na adolescência, e, quem sabe, para o resto da vida. A filha era diferente, era ativa, pragmática, "elétrica". No entanto, às vezes Vera achava que lhe faltava profundidade. Mas, enfim, o que é importante na vida? Ou o que seria melhor? Bom, mas melhor em relação a quais critérios?...
       Riu... Achou que o filho tinha a quem puxar! Continuando: vividos seriam os fatos pelos quais passamos ou os sentimentos, sensações, pensamentos...? O que é que realmente importa?  Bom... mas o que importa isso?
       Olhou para a rua pela janela da sala. Um recorte, um dia. Decidiu registrar os acontecimentos de um dia e assim examiná-lo com determinação fria e científica , com a maior isenção possível.


       Já na rua, entre os movimentos automáticos de dirigir e as previsões das tarefas que a aguardavam, viu, não pela primeira vez, um andarilho: negro, alto, magro, cabelos tal e qual uma juba empoeirada, barba cheia, postura de príncipe, a desfilar pela calçada e, depois, atravessando o cruzamento. Estava coberto de andrajos que constituíam uma obra de arte e mostravam a criatividade dos grandes estilistas. Pareciam rasgados propositalmente, em tiras muito largas ou tiras estreitas, encardidas, de cor indefinida. Ele estava mais magro. Sempre que o via, ficava com aquela vontade de saber sobre ele. Existência tão estranha... como seria?
       Lembrou-se dos filhos e da sua identificação com cada um deles. E escolheu. Saiu da avenida, estacionou o carro na primeira vaga que enxergou, colocou a trava apressadamente e correu de volta para alcançar o príncipe andrajoso.
       -Bom dia! Posso conversar com você?
       Ele parou e olhou, bem nos olhos. O primeiro olhar foi de espanto, o segundo de encantamento, o terceiro, de desconfiança. Silêncio. Vera com sorriso de amabilidade cristalizado, sentimento de medo, determinada a não voltar atrás.
       -Tem um cigarro?
       Não tinha, Vera não fumava.
       -Não tenho, mas posso comprar um maço pra você. Ali atrás, se a gente voltar, tem a padaria, eles vendem cigarros lá. Que marca você prefere?
       O negro sorriu, um sorriso pontilhado de buracos negros e de expressão irônica.
       Que ridícula. Nervosa e falando bobagens. Começou a se perguntar o que fazia ali, se nem tinha script para uma situação dessas. Lembrou que era justamente por isso que estava ali. Com visão periférica, notou que os transeuntes reparavam. Lembrou que, ao caminhar, as tiras do traje exótico expunham as nádegas do seu interlocutor e ficou sem graça. Defendeu-se da própria vergonha argumentando que ninguém iria pensar em nada, por causa da aparência dela- toda conforme às conveniências. O inconveniente a olhava, com seus olhos de raio X e o sorriso irônico. Também pensava...

       Olhar astuto.
       -Se a senhora puder me comprar um maço, eu agradeço. Se tiver Hollywood, eu prefiro. Eu espero aqui. Muito obrigado.
       Finíssimo. Vera insistiu em que ele fosse junto. "Não, eu espero aqui." Ofereceu-se para comprar um sanduíche, um salgadinho... "Não."  Um chocolate, então.  "Não, muito obrigado." Nunca o tinha visto pedindo esmola, ele vivia como?
       Vera entrou na padaria e olhou para longe, lá na outra esquina. Ele continuava lá, parado, com as mãos sobre as orelhas. Comprou os cigarros o mais rápido possível. Mas, se ele tivesse ido embora, o que poderia fazer?
       Não tinha ido embora. Agradeceu, tirou um cigarro, pediu fogo a um senhor que passava e que, com expressão de nojo, lhe esticou o braço com um isqueiro. Ofereceu um a Vera, com desenvoltura.
       -Obrigada, eu não fumo.
       Ela começava a prestar atenção no cheiro dele... inacreditável.
       Ele se abaixou, apanhou uma bituca, colocou dentro do maço. Saiu andando. Vera foi junto. De certo modo, imaginava conseguir dele algumas respostas originais, pérolas de sabedoria...quem sabe? Alguma contribuição para nem sabia bem o quê, alguma coisa que vinha permeando os seus dias, já há algum tempo.
       Andaram por vários quarteirões. Silêncio. Ele às vezes olhava para ela de viés, depois para a frente, mantendo sempre a postura altiva e passos compridos, ritmados.
       -Você é da prefeitura?
       -Não. (Pausa)  Eu trabalho numa biblioteca,  numa universidade.
       Silêncio. Mais um quarteirão.  Vera decidiu ousar:
       -E você, o que faz?
       Ele parou, sorriu, virou-se para ela:
       -Eu não preciso fazer nada. Eles cuidam de mim.
       -Quem?
       -Os deuses. Porque eu sou metade tigre e metade homem... Fui mandado para consertar tudo que está errado. Você vê essa lista que eu tenho no rosto?
       -Mas isso é uma marca, uma cicatriz.
       -Não, parece uma marca mas é uma lista, eu sou um tigre escondido.
       -E você foi mandado de onde, de onde você veio?
       -Da torre de Babel.
       -E o que você consertou?
       -Estou esperando a hora. Na hora certa vou virar um tigre inteiro e vou poder consertar todas as coisas. 
       Silêncio.
       -Você entendeu?
       -Acho que entendi. Entendi que você é muito importante.
       -Sou sim, você percebeu. Por isso veio falar comigo.
       O andarilho voltou a andar, na direção de onde tinham vindo. Vera se apressava para poder acompanhá-lo. Passaram pela travessa onde ela havia estacionado o carro, continuaram subindo a avenida, dobraram à direita, entrando numa rua estreita, sem saída.
        Era uma casa pequena, simples, estilo anos cinquenta, com jardim na frente, muro baixo... A porta e as janelas estavam fechadas. No chão do terraço, empoeirado, havia vários papéis, envelopes e folhetos espalhados. O andarilho empurrou o portão e entrou. Num canto do jardim, inclinou-se e afastou as plantas; lá estavam dois sacos grandes, um de plástico transparente, o outro, maior, de pano, da mesma cor sujo-choque dos seus trajes, boca amarrada com tiras igualmente imundas. No saco plástico Vera conseguiu distinguir um cobertor. Ele, depois de revirar ansiosamente o conteúdo do outro (conferindo?), colocou lá o maço de cigarros. Olhou para ela e arreganhou o sorriso dos mil buracos negros. Sem ironia desta vez. Sentou-se no chão, desfez novamente os nós, agora sobre a grama, num espaço entre eles dois.

       Ela ia conhecer o conteúdo do saco. Sentiu uma excitação incompreensível, como se fosse ver algo mágico, ou misterioso, qualquer coisa assim. Brincou mentalmente, nervosamente, que ele talvez fosse tirar dali de dentro as criancinhas raptadas de que a mãe dela falava na infância. Mas...que nada! Ele foi enfileirando tudo ali na grama, depois de passar  cada objeto, vagarosamente, pela frente dos olhos dela.


       Havia um  blusão de lã muito gasto, tampinhas de garrafa, uma caixa de fósforos cheia de palitos queimados, botões, um carrinho de plástico,  uma toalha de mesa rasgada, um boné,  duas revistas velhas, moedas e algumas notas, uma garrafinha de plástico azul, um caderno sem capa, um rolo de barbante, uma bolinha de metal prateado, um relógio quebrado, uma caneca de plástico cor-de-rosa, uma lata vazia de coca-cola... Ele olhava  para as quinquilharias como quem olha para um tesouro, depois olhava para ela, ajeitava com a mão a posição de alguma delas e voltava a olhar para ela.
       Vera sentiu um nó na garganta. Alguma coisa vinha vindo e ela queria evitar. Tristeza, uma tristeza enorme, uma vontade desgraçada de chorar, uma ternura imensa...  Começavam a vir lembranças da sua infância, de um bonequinho perdido, minúsculo, que havia caído por uma fresta do assoalho e nunca havia sido recuperado. Pensou uma coisa absurda, pensou que devia ter voltado lá quando adulta e comprado aquela casa e mandado arrebentar o chão e achado aquele boneco... mas pra quê? Que importância tinha isso?  Chorou, chorou aos borbotões, sem tentar mais se conter. Aos poucos, foi se sentindo aliviada. E, chorando ainda, percebeu de repente que o andarilho tapava os ouvidos e se contorcia todo, corpo e feições, angustiado.  Assustada, enxugou o rosto e ficou ali olhando, sem saber o que fazer, até que ele se acalmasse. 
       -Agora você vai embora, porque eles vão chegar.
       -Eles quem?
       -Eles estão mandando você ir embora.
       O andarilho se erguia, de novo altivo, cabeça levantada, ar determinado, no meio de seus domínios espalhados. Ela não discutiu mais.  Estava  exausta e não sabia (Não tinha?) mais o que dizer. 

      Vera entrou na padaria. Tudo que sempre fora tão familiar parecia estranho. Pessoas conversavam, riam, algumas olhavam para a televisão ligada a um canto, bem no alto, o proprietário gritava alguma coisa para alguém que vendia os pães... Faces conhecidas, na sua maioria, de funcionários e fregueses habituais, como ela. Clima alegre, descontraído, ambiente colorido, cores quentes. Tudo tão normal, tão tranqüilizador... A moça do caixa a cumprimentou sorridente, o rapaz do balcão do café também, e ela respondeu com um sorriso automático. Começou a se conscientizar da estranheza. A estranheza não estava na padaria, estava nela, apesar de ninguém ter percebido. Isso porque, naquele momento, interiormente, carregava uma diferença muito grande, um emaranhado de emoções enorme, e parecia absurdo que ali continuasse tudo igual e que a tratassem também da maneira habitual.
       Tomou café, comprou pão, foi para casa. Os filhos não estavam. Quando os encontrou, não teve coragem de contar.  Eles tinham uma porção de coisas pra comentar, do namorado, do jogo, do preço do conserto do computador, da roupa que a empregada tinha manchado, e também não perguntaram nada. Lembrou-se da idéia de registrar um dia para depois analisar e se sentiu irritada.
     Os dias foram passando, vida normal. Um dia parou para pensar e percebeu que alguma coisa havia ficado internamente, como uma marca, e era uma coisa boa, quente, que fazia abrir o peito e respirar melhor.
       Ou seria uma lista?






segunda-feira, 8 de junho de 2015


A MENINA QUE PODIA TUDO

Texto: Maria Helena Cruz Pistori
Ilustrações: Maria Rita




Era um dia cinzento, como qualquer outro. Isto quer dizer, parecia cinzento.
A menina estava em casa, sozinha. Sem irmãos, sem amigas. Só a mãe. A mãe, é claro que estava trabalhando: cozinhando, costurando e cantando (ou assobiando) alegremente o tempo todo.
Maria chega-se a ela e pergunta ansiosa:
- E agora, mãe, que é que eu faço?
- Vá brincar, minha filha!
- Não tenho ninguém pra brincar...
- Você já montou o Lego novo?
- Ainda não.
- Então, monte! Quero ver você fazendo coisas bem bonitas, tá? Quando estiver pronto, me chame! Você consegue fazer igualzinho ao da caixa! É tão habilidosa!
Ela foi. Jogou todas as pecinhas ao chão, colocou a caixa de pé, encostada à parede, para ir copiando. Direitinho. Era uma casinha, com homenzinhos, arvorezinhas, carrinhos, portinha, luzinha, e tudo mais. Tudo “inho”. Lindinho. Montou metade, talvez um terço. Era fácil.
Cansou. Quis jogar tudo, deixar desarrumado no chão... Impossível, claro. Guardou dentro da caixa.
- Não quero, mamãe. É muito chato!
-Puxa, filhinha, você faz coisas tão bonitas com o Lego! Que pena!
- E então, mãe, que é que eu faço agora?
- Não sei, meu bem... - A mãe, ocupada na organização da cozinha, continua: - E a Barbie nova? Você não quer brincar com ela? Vá para o seu quarto! Você já se esqueceu das roupinhas novas que fizemos para ela? E também para o Bob, não é, Maria?
A menina foi. Era verdade, pensou, a boneca tinha muitas roupinhas novas. Bonitinhas. Vestiu-a, montou a cama da Barbie, a cozinha da Barbie, a piscina da Barbie, o salão de beleza da Barbie... Tudo pronto, Bob veio visitá-la, com o novo calção de tênis, saíram. Pronto, acabou! Ia ler ou assistir televisão. Pegou um livro de Monteiro Lobato, já o havia lido três vezes, era legal! Quatro, cinco páginas. Desceu, foi assistir televisão: programa da Xuxa, desenho, desenho, desenho. Foi até a cozinha pegar alguma coisa para comer: bolacha de chocolate.
- Maria, o almoço está quase pronto! Bife à milanesa, como você gosta! Deixe a bolacha para comer na hora do lanche, de tarde. Tá certo, querida?
- Tudo bem. Sem qualquer hesitação ou reclamação, voltou ao programa da Xuxa. Mais cinco minutos sentadinha, esgueirou-se suavemente, foi até o quintal, pegou a Calói Cecizinha e saiu. Não avisou ninguém. Já ia voltar.









A rua era asfaltada, começou a tomar velocidade. O sol, esquentando.
Um ou outro carro passava por ela à direita. Cuidadosa, porém mais veloz. Os pinheiros da calçada faziam uma sombra gostosa, ela pedalava, deixava a bicicleta correr, quase sozinha... A rua acabou. Era um terreno baldio e ela continuava. Havia uma trilha, um pouco de lixo acumulado. Que cheiro! Vai em frente. Já está longe de casa.
“Nossa, por aqui nunca vim brincar. É bem mais bonito, quantas árvores! A trilha continua. Cada buraco ! É só desviar.
Uma subida, um morrinho, longe de casa. Uma parada, é bom para descansar um pouco. Do alto, dá para enxergar as casas lá embaixo: acho que aquela é a minha . É sim, o carro do papai na porta... Nossa, ele já chegou !”
Toma a bicicleta e continua. A mata é mais fechada, às vezes; por entre as copas das árvores, vê-se o céu. Lindo, azul! Livre! Pára, senta, tira o tênis, amarra-o no guidão da bicicleta: “Tomara que não me atrapalhe!” Respira fundo, cheirinho de mato, bom. Livre!
Continua. Altos e baixos, mais buracos, desvios, quase tombos, um tombo de verdade (tombinho...). Bate as mãos no joelho, tira o excesso de terra. Só arranhou, dói um pouco, mas já passa (“Antes de casar, sara.”). A velocidade agora é tanta, os buracos, valetas da estradinha ainda são muitos, sua bicicleta tem de ser Cross.
Claro, ela está treinando em sua bicicross! E percebe, de repente, que é um menino. Sem qualquer estranheza.
Com que delícia sente o vento bater em seu rosto, despentear seu cabelo. Pedala contra o vento, a velocidade sempre alta. Bom, muito bom, mesmo.Numa clareira da mata, cruzamento, encontra Maria, sua amiga. Também de bicicleta: Calói Ceci. “Uma companhia, até que era bom. Mas será que ela não ia atrapalhar?”
- Oi, Maria! Vamos comigo! Conheço um lugar lindo pra te levar! Venha, você vai gostar.
- João, é por essa estradinha aí?
- É.
- Então, não vou. Tem muito buraco, vou cair, me machucar.
- Cai nada. Eu vim lá de casa por ela e olhe bem: estou inteiro!
- E seu joelho?
- Ah, foi só um arranhãozinho. Nem doeu. Juro!
- Uhnn...
- Venha, Maria! É um lugar onde tem um riozinho, de água bem limpinha. A gente vê os peixinhos lá no fundo. Super bonito! E depois, a gente ainda toma banho de cachoeira! Tem uma cachoeirona!!! Você precisa ver!
- Ah, não vou mesmo. É perigoso. Lugar assim, a gente escorrega, se machuca.
- Tá bom. Vou sozinho.
- Tá.
- Puxa, mas eu queria tanto mostrar pra você... Você ia A - MAR! Venha!
- Você me ajuda?
- Claro!
Maria montou na bicicleta e acompanhou João. Ele lá na frente e ela, cuidadosamente, a cinqüenta, quase cem metros dele. Ele olha para trás:
- Maria, assim não dá! Sua bicicleta agüenta! Corra mais!
- Tenho medo, não consigo.
- Consegue sim. Faça como eu. Olhe aqui! - larga as mãos do guidão, exibindo-se. Quase cai. - Não, você não precisa fazer isso. É só pedalar mais forte, escolher o caminho, ter confiança, Maria! Isso! Venha, você está conseguindo! Venha do meu lado, assim a gente vai conversando.
- Então você não corre tanto?
- Tá bem.
Agora é um passeio. Um pouco de mãos dadas, continuam.
O calor é forte. O silêncio da mata - tão perto ou tão longe de casa? - os passarinhos cantando, o murmúrio das águas. O riozinho está perto.
Apeiam, largam a bicicleta no chão. Lado a lado vão caminhando, chutando pedrinhas, começam a correr até a margem do ribeirão. A água clarinha, fresca, passa por entre as pedras. No fundo, areia e peixinhos. Lavam o rosto, as mãos, os pés, entram vagarosamente na água rasinha. “Gelado. Bom.”
- E a cachoeira? Você mentiu: não estou vendo nenhuma.
- Você quer ver? É só continuar andando do lado do rio. Vamos!
O rio se alarga, forma como que um tanque, onde cai uma cascata bonita: “Véu da Noiva”.
- Que lindo! - faz uma pausa. - Mas é pequena... - reclama.
- Você gostou?
- Gostei.
- Quer nadar ali embaixo? É como uma piscina. Se você ficar debaixo da cachoeira, toma uma ducha.
- Que delícia!
As horas passam. Nadam, correm brincam, conversam. Dormem.
Ao acordar, Maria percebe que João fez uma fogueirinha. “Onde arranjou os fósforos?” O fogo começa a ficar alto, João coloca folhas secas, gravetos, a menina se assusta.
- João, estou com medo! Você viu o que eu vi?
- O quê?
- No meio do fogo... Se mexendo...
- São as chamas, Maria.
- Não, eu vi uma coisa. Esquisita.
- ... - Tem rabinho. Orelhas pontudas.
- ...
- Tá dançando...
- ...
Resoluto:
- É sua imaginação, Maria – e mexe com um graveto comprido no meio da fogueirinha.
- Estou ouvindo um barulho. Você não está?
- É o vento, uma brisinha.
- Será? Tô com medo.
Ele, para acalmá-la, joga areia e apaga o fogo.
- Viu? Pra que tanto susto? Que bobeira!
- Vamos embora? Tá ficando escuro. Tô com medo!
- Eu estou aqui e vou te proteger.
- Mamãe está preocupada comigo. E sua mãe também deve estar. Vamos!
- Não vou. Hoje vou dormir aqui. Não volto para casa. Amanhã, quem sabe?
- E comer? Você não está com fome?
- Só um pouquinho. Mas vou pescar.
- Como?
- Eu me arranjo.
- Eu vou embora.
- Pode ir.
- Sozinha? Você não me leva?
- É só seguir a trilha.
- Tenho medo.
- Deixe de ser boba. Você é muito tonta.
- Mas bem que você queria minha companhia, não é?
- Ahn ...
- Não é? Confesse!
- Tá bem, queria. Mas agora, se você quer ir embora, o problema é seu. Eu não vou.
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- Amanhã você volta?
- Ué, pra quê? Você não fica tão bem sozinho?
- Fico.
- Então?!
- É que... - pensando numa boa desculpa -... eu queria comer bolacha de chocolate. Daquela recheada, você sabe.
- Sei.
- Então é isso: você volta e me traz um pacote!
- Não sei...
- Traz, sim. Olhe, São Luís! Só desta que eu gosto... Ah, e também um pacote da de doce de leite !
.................................................................................................
- Vou contar pra sua mãe.
- O quê?
- Que você está aqui, que não vai voltar pra casa, que você não jantou...
- Pra quê?
- Ora, ela deve estar preocupada!
- É, sim.
- Você quer que eu não conte?
- Você que sabe... Mas hoje não volto mesmo!
- Amanhã?
- Não sei.
- Vamos, venha comigo. Amanhã a gente volta.
- Maria, não adianta. Não volto mesmo. Você pode ir. Tome cuidado! Pode até avisar mamãe, você é que sabe... Amanhã eu volto. Você vem me buscar?
- Tá.
- Dá um beijo.
- Tchau!
Ela caminha, lentamente, olha para trás:
- Fique com Deus!
Maria caminhou solitária de volta para casa. Encontrar sua mãe. No entanto, seus passos eram cada vez mais lentos, sentia que lhe faltava algo.
Caminhava pensativamente, meditando, admirando e absorvendo a beleza a seu redor, aspirando o perfume da mata quase civilização. Não pode perder o encanto. Pára. Falta-lhe João. Não pode deixá-lo.
Ficar com ele? Talvez... Corre de volta para encontrá-lo.
- João, João, você precisa ficar comigo!
- Você voltou, Maria!
- Venha comigo!
- Agora?
- Claro!








E ele foi. Como? Parecia tão decidido a ficar... Mas foi. Foi mesmo! Ele era parte de Maria, não sabia explicar como nem por que, mas, naquele momento, percebeu que não a abandonaria. E partiram.
Assim, Maria chegou nova a sua casa. Montada em sua bicicleta, correndo, voando... Soltando as mãos do guidão.

Agora, também era João. E podia, daqui pra frente, realmente, tudo! Era a menina que podia tudo.