A MENINA QUE PODIA TUDO
Texto: Maria Helena Cruz Pistori
Ilustrações: Maria Rita
Era um dia cinzento, como
qualquer outro. Isto quer dizer, parecia cinzento.
A menina estava em casa,
sozinha. Sem irmãos, sem amigas. Só a mãe. A mãe, é claro que estava
trabalhando: cozinhando, costurando e cantando (ou assobiando) alegremente o
tempo todo.
Maria chega-se a ela e
pergunta ansiosa:
- E agora, mãe, que é que eu
faço?
- Vá brincar, minha filha!
- Não tenho ninguém pra
brincar...
- Você já montou o Lego novo?
- Ainda não.
- Então, monte! Quero ver você
fazendo coisas bem bonitas, tá? Quando estiver pronto, me chame! Você consegue
fazer igualzinho ao da caixa! É tão habilidosa!
Ela foi. Jogou todas as
pecinhas ao chão, colocou a caixa de pé, encostada à parede, para ir copiando.
Direitinho. Era uma casinha, com homenzinhos, arvorezinhas, carrinhos,
portinha, luzinha, e tudo mais. Tudo “inho”. Lindinho. Montou metade, talvez um
terço. Era fácil.
Cansou. Quis jogar tudo,
deixar desarrumado no chão... Impossível, claro. Guardou dentro da caixa.
- Não quero, mamãe. É muito
chato!
-Puxa, filhinha, você faz coisas tão bonitas
com o Lego! Que pena!
- E então,
mãe, que é que eu faço agora?
- Não sei, meu
bem... - A mãe, ocupada na organização da cozinha, continua: - E a Barbie nova?
Você não quer brincar com ela? Vá para o seu quarto! Você já se esqueceu das
roupinhas novas que fizemos para ela? E também para o Bob, não é, Maria?
A menina foi.
Era verdade, pensou, a boneca tinha muitas roupinhas novas. Bonitinhas.
Vestiu-a, montou a cama da Barbie, a cozinha da Barbie, a piscina da Barbie, o
salão de beleza da Barbie... Tudo pronto, Bob veio visitá-la, com o novo calção
de tênis, saíram. Pronto, acabou! Ia ler ou assistir televisão. Pegou um livro
de Monteiro Lobato, já o havia lido três vezes, era legal! Quatro, cinco
páginas. Desceu, foi assistir televisão: programa da Xuxa, desenho, desenho,
desenho. Foi até a cozinha pegar alguma coisa para comer: bolacha de chocolate.
- Maria, o
almoço está quase pronto! Bife à milanesa, como você gosta! Deixe a bolacha
para comer na hora do lanche, de tarde. Tá certo, querida?
- Tudo bem.
Sem qualquer hesitação ou reclamação, voltou ao programa da Xuxa. Mais cinco
minutos sentadinha, esgueirou-se suavemente, foi até o quintal, pegou a Calói
Cecizinha e saiu. Não avisou ninguém. Já ia voltar.
A rua era
asfaltada, começou a tomar velocidade. O sol, esquentando.
Um ou outro
carro passava por ela à direita. Cuidadosa, porém mais veloz. Os pinheiros da
calçada faziam uma sombra gostosa, ela pedalava, deixava a bicicleta correr,
quase sozinha... A rua acabou. Era um terreno baldio e ela continuava. Havia
uma trilha, um pouco de lixo acumulado. Que cheiro! Vai em frente. Já está
longe de casa.
“Nossa, por
aqui nunca vim brincar. É bem mais bonito, quantas árvores! A trilha continua.
Cada buraco ! É só desviar.
Uma subida, um
morrinho, longe de casa. Uma parada, é bom para descansar um pouco. Do alto, dá
para enxergar as casas lá embaixo: acho que aquela é a minha . É sim, o carro
do papai na porta... Nossa, ele já chegou !”
Toma a
bicicleta e continua. A mata é mais fechada, às vezes; por entre as copas das
árvores, vê-se o céu. Lindo, azul! Livre! Pára, senta, tira o tênis, amarra-o
no guidão da bicicleta: “Tomara que não me atrapalhe!” Respira fundo, cheirinho
de mato, bom. Livre!
Continua.
Altos e baixos, mais buracos, desvios, quase tombos, um tombo de verdade
(tombinho...). Bate as mãos no joelho, tira o excesso de terra. Só arranhou,
dói um pouco, mas já passa (“Antes de casar, sara.”). A velocidade agora é
tanta, os buracos, valetas da estradinha ainda são muitos, sua bicicleta tem de
ser Cross.
Claro, ela
está treinando em sua bicicross! E percebe, de repente, que é um menino. Sem
qualquer estranheza.
Com que
delícia sente o vento bater em seu rosto, despentear seu cabelo. Pedala contra
o vento, a velocidade sempre alta. Bom, muito bom, mesmo.Numa clareira da mata,
cruzamento, encontra Maria, sua amiga. Também de bicicleta: Calói Ceci. “Uma
companhia, até que era bom. Mas será que ela não ia atrapalhar?”
- Oi, Maria!
Vamos comigo! Conheço um lugar lindo pra te levar! Venha, você vai gostar.
- João, é por
essa estradinha aí?
- É.
- Então, não
vou. Tem muito buraco, vou cair, me machucar.
- Cai nada. Eu
vim lá de casa por ela e olhe bem: estou inteiro!
- E seu
joelho?
- Ah, foi só
um arranhãozinho. Nem doeu. Juro!
- Uhnn...
- Venha,
Maria! É um lugar onde tem um riozinho, de água bem limpinha. A gente vê os
peixinhos lá no fundo. Super bonito! E depois, a gente ainda toma banho de
cachoeira! Tem uma cachoeirona!!! Você precisa ver!
- Ah, não vou
mesmo. É perigoso. Lugar assim, a gente escorrega, se machuca.
- Tá bom. Vou
sozinho.
- Tá.
- Puxa, mas eu
queria tanto mostrar pra você... Você ia A - MAR! Venha!
- Você me
ajuda?
- Claro!
Maria montou
na bicicleta e acompanhou João. Ele lá na frente e ela, cuidadosamente, a
cinqüenta, quase cem metros dele. Ele olha para trás:
- Maria, assim
não dá! Sua bicicleta agüenta! Corra mais!
- Tenho medo,
não consigo.
- Consegue
sim. Faça como eu. Olhe aqui! - larga as mãos do guidão, exibindo-se. Quase
cai. - Não, você não precisa fazer isso. É só pedalar mais forte, escolher o
caminho, ter confiança, Maria! Isso! Venha, você está conseguindo! Venha do meu
lado, assim a gente vai conversando.
- Então você
não corre tanto?
- Tá bem.
Agora é um
passeio. Um pouco de mãos dadas, continuam.
O calor é
forte. O silêncio da mata - tão perto ou tão longe de casa? - os passarinhos
cantando, o murmúrio das águas. O riozinho está perto.
Apeiam, largam
a bicicleta no chão. Lado a lado vão caminhando, chutando pedrinhas, começam a
correr até a margem do ribeirão. A água clarinha, fresca, passa por entre as
pedras. No fundo, areia e peixinhos. Lavam o rosto, as mãos, os pés, entram
vagarosamente na água rasinha. “Gelado. Bom.”
- E a
cachoeira? Você mentiu: não estou vendo nenhuma.
- Você quer
ver? É só continuar andando do lado do rio. Vamos!
O rio se
alarga, forma como que um tanque, onde cai uma cascata bonita: “Véu da Noiva”.
- Que lindo! -
faz uma pausa. - Mas é pequena... - reclama.
- Você gostou?
- Gostei.
- Quer nadar
ali embaixo? É como uma piscina. Se você ficar debaixo da cachoeira, toma uma
ducha.
- Que delícia!
As horas
passam. Nadam, correm brincam, conversam. Dormem.
Ao acordar,
Maria percebe que João fez uma fogueirinha. “Onde arranjou os fósforos?” O fogo
começa a ficar alto, João coloca folhas secas, gravetos, a menina se assusta.
- João, estou
com medo! Você viu o que eu vi?
- O quê?
- No meio do
fogo... Se mexendo...
- São as
chamas, Maria.
- Não, eu vi
uma coisa. Esquisita.
- ... - Tem
rabinho. Orelhas pontudas.
- ...
- Tá
dançando...
- ...
Resoluto:
- É sua
imaginação, Maria – e mexe com um graveto comprido no meio da fogueirinha.
- Estou
ouvindo um barulho. Você não está?
- É o vento,
uma brisinha.
- Será? Tô com
medo.
Ele, para
acalmá-la, joga areia e apaga o fogo.
- Viu? Pra que
tanto susto? Que bobeira!
- Vamos
embora? Tá ficando escuro. Tô com medo!
- Eu estou
aqui e vou te proteger.
- Mamãe está
preocupada comigo. E sua mãe também deve estar. Vamos!
- Não vou.
Hoje vou dormir aqui. Não volto para casa. Amanhã, quem sabe?
- E comer?
Você não está com fome?
- Só um
pouquinho. Mas vou pescar.
- Como?
- Eu me
arranjo.
- Eu vou
embora.
- Pode ir.
- Sozinha?
Você não me leva?
- É só seguir
a trilha.
- Tenho medo.
- Deixe de ser
boba. Você é muito tonta.
- Mas bem que
você queria minha companhia, não é?
- Ahn ...
- Não é?
Confesse!
- Tá bem,
queria. Mas agora, se você quer ir embora, o problema é seu. Eu não vou.
..........................................................
- Amanhã você
volta?
- Ué, pra quê?
Você não fica tão bem sozinho?
- Fico.
- Então?!
- É que... -
pensando numa boa desculpa -... eu queria comer bolacha de chocolate. Daquela
recheada, você sabe.
- Sei.
- Então é
isso: você volta e me traz um pacote!
- Não sei...
- Traz, sim.
Olhe, São Luís! Só desta que eu gosto... Ah, e também um pacote da de doce de
leite !
.................................................................................................
- Vou contar
pra sua mãe.
- O quê?
- Que você
está aqui, que não vai voltar pra casa, que você não jantou...
- Pra quê?
- Ora, ela
deve estar preocupada!
- É, sim.
- Você quer
que eu não conte?
- Você que
sabe... Mas hoje não volto mesmo!
- Amanhã?
- Não sei.
- Vamos, venha
comigo. Amanhã a gente volta.
- Maria, não
adianta. Não volto mesmo. Você pode ir. Tome cuidado! Pode até avisar mamãe,
você é que sabe... Amanhã eu volto. Você vem me buscar?
- Tá.
- Dá um beijo.
- Tchau!
Ela caminha,
lentamente, olha para trás:
- Fique com
Deus!
Maria caminhou
solitária de volta para casa. Encontrar sua mãe. No entanto, seus passos eram
cada vez mais lentos, sentia que lhe faltava algo.
Caminhava
pensativamente, meditando, admirando e absorvendo a beleza a seu redor,
aspirando o perfume da mata quase civilização. Não pode perder o encanto. Pára.
Falta-lhe João. Não pode deixá-lo.
Ficar com ele?
Talvez... Corre de volta para encontrá-lo.
- João, João,
você precisa ficar comigo!
- Você voltou,
Maria!
- Venha
comigo!
- Agora?
- Claro!
E ele foi.
Como? Parecia tão decidido a ficar... Mas foi. Foi mesmo! Ele era parte de
Maria, não sabia explicar como nem por que, mas, naquele momento, percebeu que
não a abandonaria. E partiram.
Assim, Maria
chegou nova a sua casa. Montada em sua bicicleta, correndo, voando... Soltando
as mãos do guidão.
Agora,
também era João. E podia, daqui pra frente, realmente, tudo! Era a menina que
podia tudo.
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