domingo, 14 de junho de 2015


UM DIA
Maria Rita Almeida Correa

       -Tem tanta coisa importante que eu nem sei por onde começar.
       -Escolha.
       -Então, eu estou tentando decidir o que é mais importante pra escolher, mas o problema é que eu não consigo.
       -Tenta não pensar, pelo amor de Deus, uma vez, pra variar...
       -Se eu não pensar dá na mesma, continuo sem fazer nada, o meu movimento hoje é não fazer movimento nenhum.
       -Tudo bem, então não faça!
       -Mas isso me deixa angustiado.

       Vera ficou em silêncio, se controlando para não fazer nenhum comentário agressivo. Adolescência é mesmo uma fase difícil e ela tinha de ter paciência... Não, não era verdade. Seu filho era assim - na adolescência, e, quem sabe, para o resto da vida. A filha era diferente, era ativa, pragmática, "elétrica". No entanto, às vezes Vera achava que lhe faltava profundidade. Mas, enfim, o que é importante na vida? Ou o que seria melhor? Bom, mas melhor em relação a quais critérios?...
       Riu... Achou que o filho tinha a quem puxar! Continuando: vividos seriam os fatos pelos quais passamos ou os sentimentos, sensações, pensamentos...? O que é que realmente importa?  Bom... mas o que importa isso?
       Olhou para a rua pela janela da sala. Um recorte, um dia. Decidiu registrar os acontecimentos de um dia e assim examiná-lo com determinação fria e científica , com a maior isenção possível.


       Já na rua, entre os movimentos automáticos de dirigir e as previsões das tarefas que a aguardavam, viu, não pela primeira vez, um andarilho: negro, alto, magro, cabelos tal e qual uma juba empoeirada, barba cheia, postura de príncipe, a desfilar pela calçada e, depois, atravessando o cruzamento. Estava coberto de andrajos que constituíam uma obra de arte e mostravam a criatividade dos grandes estilistas. Pareciam rasgados propositalmente, em tiras muito largas ou tiras estreitas, encardidas, de cor indefinida. Ele estava mais magro. Sempre que o via, ficava com aquela vontade de saber sobre ele. Existência tão estranha... como seria?
       Lembrou-se dos filhos e da sua identificação com cada um deles. E escolheu. Saiu da avenida, estacionou o carro na primeira vaga que enxergou, colocou a trava apressadamente e correu de volta para alcançar o príncipe andrajoso.
       -Bom dia! Posso conversar com você?
       Ele parou e olhou, bem nos olhos. O primeiro olhar foi de espanto, o segundo de encantamento, o terceiro, de desconfiança. Silêncio. Vera com sorriso de amabilidade cristalizado, sentimento de medo, determinada a não voltar atrás.
       -Tem um cigarro?
       Não tinha, Vera não fumava.
       -Não tenho, mas posso comprar um maço pra você. Ali atrás, se a gente voltar, tem a padaria, eles vendem cigarros lá. Que marca você prefere?
       O negro sorriu, um sorriso pontilhado de buracos negros e de expressão irônica.
       Que ridícula. Nervosa e falando bobagens. Começou a se perguntar o que fazia ali, se nem tinha script para uma situação dessas. Lembrou que era justamente por isso que estava ali. Com visão periférica, notou que os transeuntes reparavam. Lembrou que, ao caminhar, as tiras do traje exótico expunham as nádegas do seu interlocutor e ficou sem graça. Defendeu-se da própria vergonha argumentando que ninguém iria pensar em nada, por causa da aparência dela- toda conforme às conveniências. O inconveniente a olhava, com seus olhos de raio X e o sorriso irônico. Também pensava...

       Olhar astuto.
       -Se a senhora puder me comprar um maço, eu agradeço. Se tiver Hollywood, eu prefiro. Eu espero aqui. Muito obrigado.
       Finíssimo. Vera insistiu em que ele fosse junto. "Não, eu espero aqui." Ofereceu-se para comprar um sanduíche, um salgadinho... "Não."  Um chocolate, então.  "Não, muito obrigado." Nunca o tinha visto pedindo esmola, ele vivia como?
       Vera entrou na padaria e olhou para longe, lá na outra esquina. Ele continuava lá, parado, com as mãos sobre as orelhas. Comprou os cigarros o mais rápido possível. Mas, se ele tivesse ido embora, o que poderia fazer?
       Não tinha ido embora. Agradeceu, tirou um cigarro, pediu fogo a um senhor que passava e que, com expressão de nojo, lhe esticou o braço com um isqueiro. Ofereceu um a Vera, com desenvoltura.
       -Obrigada, eu não fumo.
       Ela começava a prestar atenção no cheiro dele... inacreditável.
       Ele se abaixou, apanhou uma bituca, colocou dentro do maço. Saiu andando. Vera foi junto. De certo modo, imaginava conseguir dele algumas respostas originais, pérolas de sabedoria...quem sabe? Alguma contribuição para nem sabia bem o quê, alguma coisa que vinha permeando os seus dias, já há algum tempo.
       Andaram por vários quarteirões. Silêncio. Ele às vezes olhava para ela de viés, depois para a frente, mantendo sempre a postura altiva e passos compridos, ritmados.
       -Você é da prefeitura?
       -Não. (Pausa)  Eu trabalho numa biblioteca,  numa universidade.
       Silêncio. Mais um quarteirão.  Vera decidiu ousar:
       -E você, o que faz?
       Ele parou, sorriu, virou-se para ela:
       -Eu não preciso fazer nada. Eles cuidam de mim.
       -Quem?
       -Os deuses. Porque eu sou metade tigre e metade homem... Fui mandado para consertar tudo que está errado. Você vê essa lista que eu tenho no rosto?
       -Mas isso é uma marca, uma cicatriz.
       -Não, parece uma marca mas é uma lista, eu sou um tigre escondido.
       -E você foi mandado de onde, de onde você veio?
       -Da torre de Babel.
       -E o que você consertou?
       -Estou esperando a hora. Na hora certa vou virar um tigre inteiro e vou poder consertar todas as coisas. 
       Silêncio.
       -Você entendeu?
       -Acho que entendi. Entendi que você é muito importante.
       -Sou sim, você percebeu. Por isso veio falar comigo.
       O andarilho voltou a andar, na direção de onde tinham vindo. Vera se apressava para poder acompanhá-lo. Passaram pela travessa onde ela havia estacionado o carro, continuaram subindo a avenida, dobraram à direita, entrando numa rua estreita, sem saída.
        Era uma casa pequena, simples, estilo anos cinquenta, com jardim na frente, muro baixo... A porta e as janelas estavam fechadas. No chão do terraço, empoeirado, havia vários papéis, envelopes e folhetos espalhados. O andarilho empurrou o portão e entrou. Num canto do jardim, inclinou-se e afastou as plantas; lá estavam dois sacos grandes, um de plástico transparente, o outro, maior, de pano, da mesma cor sujo-choque dos seus trajes, boca amarrada com tiras igualmente imundas. No saco plástico Vera conseguiu distinguir um cobertor. Ele, depois de revirar ansiosamente o conteúdo do outro (conferindo?), colocou lá o maço de cigarros. Olhou para ela e arreganhou o sorriso dos mil buracos negros. Sem ironia desta vez. Sentou-se no chão, desfez novamente os nós, agora sobre a grama, num espaço entre eles dois.

       Ela ia conhecer o conteúdo do saco. Sentiu uma excitação incompreensível, como se fosse ver algo mágico, ou misterioso, qualquer coisa assim. Brincou mentalmente, nervosamente, que ele talvez fosse tirar dali de dentro as criancinhas raptadas de que a mãe dela falava na infância. Mas...que nada! Ele foi enfileirando tudo ali na grama, depois de passar  cada objeto, vagarosamente, pela frente dos olhos dela.


       Havia um  blusão de lã muito gasto, tampinhas de garrafa, uma caixa de fósforos cheia de palitos queimados, botões, um carrinho de plástico,  uma toalha de mesa rasgada, um boné,  duas revistas velhas, moedas e algumas notas, uma garrafinha de plástico azul, um caderno sem capa, um rolo de barbante, uma bolinha de metal prateado, um relógio quebrado, uma caneca de plástico cor-de-rosa, uma lata vazia de coca-cola... Ele olhava  para as quinquilharias como quem olha para um tesouro, depois olhava para ela, ajeitava com a mão a posição de alguma delas e voltava a olhar para ela.
       Vera sentiu um nó na garganta. Alguma coisa vinha vindo e ela queria evitar. Tristeza, uma tristeza enorme, uma vontade desgraçada de chorar, uma ternura imensa...  Começavam a vir lembranças da sua infância, de um bonequinho perdido, minúsculo, que havia caído por uma fresta do assoalho e nunca havia sido recuperado. Pensou uma coisa absurda, pensou que devia ter voltado lá quando adulta e comprado aquela casa e mandado arrebentar o chão e achado aquele boneco... mas pra quê? Que importância tinha isso?  Chorou, chorou aos borbotões, sem tentar mais se conter. Aos poucos, foi se sentindo aliviada. E, chorando ainda, percebeu de repente que o andarilho tapava os ouvidos e se contorcia todo, corpo e feições, angustiado.  Assustada, enxugou o rosto e ficou ali olhando, sem saber o que fazer, até que ele se acalmasse. 
       -Agora você vai embora, porque eles vão chegar.
       -Eles quem?
       -Eles estão mandando você ir embora.
       O andarilho se erguia, de novo altivo, cabeça levantada, ar determinado, no meio de seus domínios espalhados. Ela não discutiu mais.  Estava  exausta e não sabia (Não tinha?) mais o que dizer. 

      Vera entrou na padaria. Tudo que sempre fora tão familiar parecia estranho. Pessoas conversavam, riam, algumas olhavam para a televisão ligada a um canto, bem no alto, o proprietário gritava alguma coisa para alguém que vendia os pães... Faces conhecidas, na sua maioria, de funcionários e fregueses habituais, como ela. Clima alegre, descontraído, ambiente colorido, cores quentes. Tudo tão normal, tão tranqüilizador... A moça do caixa a cumprimentou sorridente, o rapaz do balcão do café também, e ela respondeu com um sorriso automático. Começou a se conscientizar da estranheza. A estranheza não estava na padaria, estava nela, apesar de ninguém ter percebido. Isso porque, naquele momento, interiormente, carregava uma diferença muito grande, um emaranhado de emoções enorme, e parecia absurdo que ali continuasse tudo igual e que a tratassem também da maneira habitual.
       Tomou café, comprou pão, foi para casa. Os filhos não estavam. Quando os encontrou, não teve coragem de contar.  Eles tinham uma porção de coisas pra comentar, do namorado, do jogo, do preço do conserto do computador, da roupa que a empregada tinha manchado, e também não perguntaram nada. Lembrou-se da idéia de registrar um dia para depois analisar e se sentiu irritada.
     Os dias foram passando, vida normal. Um dia parou para pensar e percebeu que alguma coisa havia ficado internamente, como uma marca, e era uma coisa boa, quente, que fazia abrir o peito e respirar melhor.
       Ou seria uma lista?






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